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Visão de Roberto Brant no Malaui


Resolvi escrever esse artigo para chamar a atenção para um fato inusitado e bastante doloroso ocorrido aqui nesse canto remoto do mundo, nesse pequeno país africano chamado Malaui. Acho que ele contém lições e advertências de diversas ordens e pode ajudar na nossa incessante busca pela compreensão do ser humano no contexto moderno dos direitos humanos.
Fato é que, nos primeiros dias de janeiro de 2010, levados pelo clima de alegria do novo ano que se iniciava e embalados por um sonho antigo, um antigo casal que já vivia junto por muitos anos economizou dinheiro e decidiu oficializar sua união em uma remota igreja localizada no miolo de uma das inúmeras favelas da maior cidade do país, Blantyre. Esse seria um fato corriqueiro na vida daquela comunidade, não fôsse por um pequeno e crucial detalhe: um dos nubentes ser uma transexual. Tão certa estava de sua condição que, tranquila, organizou toda a cerimônia de casamento, em perfeita harmonia com a sua comunidade. Ali estavam os convidados, o sacerdote, as respectivas famílias, tudo certinho... Até que, mobilizados por uma denúncia anônima, de repente apareceu a polícia. Foi como se o mundo virasse de cabeça para baixo... Rapidamente formou-se uma confusão generalizada e todos os ingredientes de um grande escândalo se amalgamaram em instantes, o sonho volatilizado em tragédia, em meio a muito choro, repúdio, vergonha, fuga, negação e, claro, violência.... Em meia hora, todo um mundo destruído. Saíram do templo religioso algemados, escoltados por policiais que os “protegiam” da subitamente irada população; aquela mesma que, momentos atrás assistia curiosa a cerimônia. Agora, agressões verbais, risos de escárnio e muito deboche acompanhavam o casal na sua via crucis até a delegacia.
Autuados em fraglante, os dois homens foram inscritos em dois artigos do código penal do Malaui, “prática de ato contra a natureza humana” e prática de indecência” sendo assim, imediatamente postos a ferros. A partir daí o país se viu galvanizado por uma discussão intensa pelos jornais e internet, com repercussão na Casa Branca, no Parlamento inglês, nas diversas embaixadas sediadas no país e em todas as comissões de direitos humanos internacionais, além, é claro, das agências da ONU, da Anistia Internacional e outras tantas ONG da área de direitos humanos. Foram inúmeros e todos fracassados, os documentos internacionais de condenação à prisão e pedidos de soltura.
Internamente, de uma forma esquemática, cristalizou-se uma opinião de que o país não podia tolerar essas práticas “alienígenas” absolutamente contrárias à cultura do país e trazidas pelo estrangeiro “ocidental”. O caso passou a ter conotações xenofóbicas e trouxe à tona todo o rancor anticolonialinsta ainda contido nesse povo, mesmo passados mais de quarenta anos desde a libertação do jugo inglês... a homosexualidade foi então considerada como coisa do estrangeiro ocidental interessado em destruir a cultura nativa e impor seus próprios valores. Por outro lado, houve uma surda reação a qualquer movimento pela libertação do casal, entendida essa como demostração de fraqueza frente aos poderosos doadores...O Malaui, fortemente dependente de ajuda externa, não podia destarte se dobrar à pressão dos ricos doadores. Presos estavam, presos deveriam ficar. E assim foi. O pedido para que aguardassem em liberdade o julgamento, conforme prevê a Constituição do país, foi reiteradas vezes negado, e ainda tiveram que passar pelo constrangimento cruel dos exames físicos para constatar se houve ou não a consumação do ato de sodomia (o que nunca ficou claro...) e, pior, dos exames “psicológicos” para atestar e, quiçá corrigir, a homosexualidade de ambos.
No mês passado, maio 2010, em meio a muita expectativa, finalmente, o caso foi a julgamento em primeira instância e, para suspresa até dos mais arraigados homofóbicos, em menos de dez minutos o juiz proferiu a sentença: pena de 14 anos de prisão, a máxima em vigor no país, agravada com um requinte a mais de crueldade: a submissão a trabalhos forçados. Para se ter uma idéia da gravidade dessa pena, menos de um mês antes, um avô que havia estuprado a sua própria neta de 10 anos por anos a fio, foi condenado a apenas 4 anos de prisão, tendo aguardado o julgamento em liberdade...
Foi um escândalo dentro do escândalo! O juiz argumentou que agia assim para dar um exemplo ao país no sentido de coibir para sempre qualquer tentativa de se proceder como o casal condenado. Por uma grande coincidência, Os diretores executivos da UNAIDS, o Programa Conjunto das Nações Unidas para o combate à Aids, Michel Sidibé e o do Fundo Global para Aids, Tuberculose e Malária, Michel Kazackstine tinham já uma viagem há muito programada ao Malaui, para se encontrar com o presidente do país, Bingo wa Mutarika, que ora exerce a presidência da União Africana. Abordaram o assunto do casal gay e obtiveram uma resposta algo alentadora, em termos de alternativas de negociação. Uma semana depois, também coincidentemente, chegava ao país o Secretário Geral da ONU, Ban Ki Moon, com o mesmo propósito de visitar o atual chefe da União Africana além de cumprir compromissos das Nações Unidas. Dada a situação, também não perdeu a oportunidade de abordar o tema com o sr. Presidente da República.
Foi então que, embora a Ministra de Gênero e Desenvolvimento da Criança tenha negado publicamente qualquer relação entre os dois atos, durante a entrevista coletiva proferida imediatamente após a audiência com o secretário geral da ONU, o presidente Mutarika anunciou o seu perdão ao casal, por razões estritamante humanitárias, tendo, no entanto, reiterado seus crimes. Menos de 24 horas depois os dois estavam em liberdade. Nos jornais a nação se viu dividida: estaria o presidente cedendo à pressão dos doadores? Ou estaria o presidente movido por razões realmente humanitárias? Seja lá como for, a solução do caso ficou ainda mais inusitada, pois, uma semana depois de livre, um dos nubentes anunciou em alto e bom som que tinha mudado de idéia e estava agora compromissado com uma mulher, com quem ia passar a viver daquele dia em diante. E hoje, 16 de junho, os jornais estampam a foto desse novo casal recebendo das mãos de uma representante de um influente comerciante local um maço de dinheiro no valor de cem mil Kwashas, o que convertido em moeda brasileira dá algo em torno de mil e duzentos reais. O empresário diz que a doação se justifica porque está feliz com a decisão do rapaz de se casar, dessa vez com uma mulher, e deu a ele essa quantia para que começe um negócio capaz de sustentar sua família.
E quanto à antiga parceira, a transexual com quem vivera tantos anos? Imediatamente após o perdão presidencial, por motivos de segurança ela mudou-se de Blantyre, pois havia sido ameaçada de morte caso retornasse a seu antigo local de residência. Além disso, parentes e familiares também a renegaram imediatamente após sua prisão, de maneira que se viu inteiramente só e abandonada, não fora o apoio de alguns ativistas, líderes de uma ONG nacional focada no trabalho com minorias. Hoje, está ao abrigo dessa ONG, e prepara-se para sair do país rumo ao Canadá, num exílio imposto pela sociedade local.
Esse caso traz inúmeras lições e reflexões para todos nós ativistas da causa de direitos humanos e prifssionais de saúde pública na luta contra a epidemia de HIV mundo afora. Por que ainda hoje, em pleno século XXI, trata-se homossexuais como se criminosos fossem? Por que os países individualmente ainda têm esse “direito”? E como isso ainda é possível com a justificativa nefanda de “imposição de padrões culturais alienígenas”, como se a questão da homossexualidade fosse confinada aos limites da cultura e afeta unicamente à área da moral, nada tendo a ver com as complexas questões individuais, genéticas e até éticas. Afinal de contas, qual é o mal que esse casal infrigiu a quem quer que seja? Além disso, por que, enquanto os dois viviam no anonimato da vida comum, a família, os amigos, os vizinhos e a comunidade onde viviam aparentemente os aceitavam, ou, pelo menos, os toleravam sem maiores problemas? E quais são os fatores que sempre que desencadeados, imediatamente põem à mostra a carga letal de preconceito, estigma e discriminação, latentes na comundade, assim que um certo equilíbrio instável é quebrado? E existe mesmo esse equilíbrio, quer no Malaui, quer no Brasil?
Por outro lado, qual seria o mecanismo psicológico em ação nesse homem que agora resolve se casar com uma mulher, virando heterosexual em menos de uma semana, aparentemente optando por refazer a sua vida e renegando completamente o passado, no bom e velho estilo, “Telma, eu não sou gay” ? Me intriga pensar em como ele deve estar lidando com sua afetividade, provavelmente em pedaços como consequencia da repressão física e psicológica a que foi submentido. Por outro lado, fico impactado ao constatar como poderoso pode ser o aparato repressivo, forjando essa situação que agora culmina com a ação desse pretenso empresário que doa uma “recompensa” e um “estímulo”, numa metáfora clara de como pode ser promissora a vida de um pai de família heterosexual no Malaui... Mas será só no Malaui que acontece isso? Imagina se essa moda de pagamento compensatório pega no Brasil...
Finalmente, gostaria de encerrar introduzindo uma nota de solidariedade à transexual, essa sim vitmizada duplamente nesse caso todo. Para ela, por enquanto não há final feliz. Mais uma vez faz aqui o papel da “Geni” de Chico Buarque, para a qual estão reservadas todas as culpas, todos os opóbrios, todas as pedras, paus e escatologias. O próprio ex-nubente agora diz que nunca teve relações carnais com ela, que tudo não passou de um equívoco e que sabe o risco que correm sob o peso da lei pairando sobre eles... Ele até pode aparentar ser o que não é... A ela cabe apenas ser o que ela é. E isso seria assim tão diferente no Malaui quanto no Brasil? Travesti e respeito andam juntos finalmente?
Acho que, em tempo de Parada Gay e dessa vertente apoteótica afirmativa da causa homossexual é importante refletir nesse fato ocorrido aqui do outro lado do Atlântico, como uma mensagem vinda do lado obscuro da consciência humana; tudo pode estar por um fio e a qualquer solto som pode dar tudo errado... Temos muito que caminhar ainda... Nunca podemos nos esquecer disso.
Roberto Brant Campos,
52 anos, médico sanitarista,
Conselheiro de Parcerias da UNAIDS, Malaui
(As opiniões do articulista aqui registradas não necessariamente refletem aquelas oficialmente estipuladas pela instituição para a qual trabalha, a UNAIDS)
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