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CÉREBROS (HOMOS)SEXUAIS: AS RESSONÂNCIAS DO PRECONCEITO


Autor: Alípio de Sousa Filho

Professor da UFRN. Editor da revista Bagoas.

TVs, jornais, internet divulgaram: na Suécia, cientistas encontraram as "provas mais sólidas até hoje de que a sexualidade não é uma opção, mas uma característica biológica". Nos cérebros de homens e mulheres homossexuais, "descobriram" características próprias: o cérebro dos gays é igual ao das mulheres heterossexuais e o cérebro das lésbicas é igual ao dos homens heterossexuais. Estudos com ressonância magnética seriam a "prova". A idéia de um cérebro gay ou lésbico não é nova. Simon Le Vay, especialista norte-americano em neuroanatomia e autor do livro The Sexual Brain, publicado em 1991, já propunha a tese.

A idéia do cérebro homossexual é vista por muitos gays e lésbicas como um argumento a favor de suas lutas de afirmação identitária e por direitos. Mas é preciso dizer que estes se enganam inteiramente. O argumento segundo o qual a descoberta de "aspectos biológicos" da homossexualidade favorece a gays e lésbicas contra o preconceito é simplesmente equivocado e reacionário. O que a idéia do cérebro gay (ou lésbico) visa barrar é a afirmação das diversas possibilidades do sexual (incluindo a heterossexualidade) como posições libidinais das escolhas do objeto de desejo do sujeito humano, ao mesmo título iguais entre si, nenhuma delas sendo natural, inata, biologicamente configurada.

Nas nossas sociedades, o que é insuportável para muitos é a concepção que a sexualidade é uma escolha, uma tomada de decisão, embora nem inteiramente consciente nem totalmente determinada. Nos sentidos com os quais estudos diversos (em antropologia, sociologia, história, psicanálise) têm afirmado, o desejo sexual é construído em percursos pessoais nos quais se misturam elementos variados, seguindo direcionamentos inconscientes e outros conscientes, e sempre cultural e historicamente situados, mas sempre uma escolha na economia dos prazeres. E por inconsciente não se devendo entender nada em sentido negativo. Da mesma forma, não se pode esquecer o que Michel Foucault apontou: a existência da sexualidade como uma essência dada, que os indivíduos seriam seus portadores, é invenção histórica que se inicia a partir do fim do século XVI em sociedades européias. Hoje, acreditando-se em superação do preconceito, fala-se em "orientação sexual", como se a locução por si mesma fosse uma solução teórica e politicamente adequada. Não é, haja vista sua substancialização (psicologizante ou biologizante) crescente. Poderíamos simplesmente nomear a homossexualidade como uma variante da cultura sexual humana, como uma possibilidade do sexual, mas prefere-se achar que "orientação sexual" é conceito mais adequado (no fundo, por crença substancialista), esquecendo-se, mais uma vez, que se trata aí de captura do pensamento pelo discurso social-histórico.

Por efeito da longa história de colonização pelo preconceito anti-homossexual, que tornou a heterossexualidade uma evidência em si mesmo de sua natureza natural, pensar que existem causas específicas que produziriam a homossexualidade ou aspectos biológicos que a atestariam como inscrita na biologia dos indivíduos, mas ainda assim estigmatizada como um desvio, tornou-se uma idéia que freqüenta a cabeça de muitos. Mesmo às vezes no pensamento daqueles que se crêem sem preconceitos. No imaginário de nossas sociedades, quando não manifesto, permanece latente a crença que homens e mulheres homossexuais são pessoas que, no seu desenvolvimento sexual, carregam algo que merece ser explicado. Vista como realidade para cuja existência contribui uma causa específica, a homossexualidade é objeto das mais variadas especulações...

A procura por explicar os fenômenos humanos a partir de bases biológicas não é um fato de hoje na história da ciência. Todavia, a onda atual do determinismo biológico tem permitido retornar, com muita força, explicações biologizantes de fatos sociais e fenômenos culturais, com ampla aceitação e difusão pelas mídias. Temos sido bombardeados pela descrição de fenômenos tomados como desencadeados por "ações do cérebro", à simples vista fenômenos que são reflexos ou reações fisiológicas provocadas por situações emocionais, subjetivas, sociais. Hoje, o uso das imagens feitas com ressonância magnética talvez seja o melhor exemplo dessa inversão. Não faz muito tempo, revista nacional de ampla circulação trouxe matéria sobre as "bases cerebrais" das atitudes de compradores compulsivos: são o nucleus accumbens, o córtex insular e o córtex pré-frontal médio que nos fazem comprar o carro da propaganda na TV, a camisa que está na vitrine ou o perfume que adoramos! No discurso do determinismo biológico, não há sociedade, propaganda, mercado, subjetividades... existem apenas a química dos hormônios e cérebros em atuação.

Simon Le Vay, estudando cérebros de cadáveres, com tecidos naturalmente modificados pela morte, afirmou ter encontrado uma diferença estrutural de tamanho nos hipotálamos de gays e lésbicas: nos homossexuais, seria de menor tamanho. Outro exemplo da extrapolação abusiva do biologismo cientificista é Gunther Dörner, que, trabalhando na Universidade Humboldt, em Berlim, e estudando cérebros de ratos, concluiu que a identidade de gênero dos bichinhos podia ser modificada, quando se interferia em partes de seu cérebro. Gunther Dörner partiu daí para fazer afirmações sobre fatores biológicos da homossexualidade humana... Para o determinismo biológico, ratos, cadáveres e ressonâncias servem para explicar aspectos da subjetividade humana, do desejo, das sexualidades, das construções de gênero.

Vale lembrar aqui as palavras da historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, que, a propósito da vaga biologizante atual, nomeou-a de "pretensão obscurantista", denunciando esta por confundir "o pensamento com um neurônio" e "o desejo com uma secreção química".

A idéia do cérebro homossexual converge ainda fortemente para o senso comum social que acredita que os gays são homens efeminados (mulheres em corpos de homens; homens com cabeça e anseios de mulheres), assim como acredita que as lésbicas são mulheres masculinizadas (homens em corpos de mulheres; mulheres com cabeça e anseios de homens). A idéia reforça a crença que gays e lésbicas seriam mesmo os "invertidos" de outrora: inversão que, agora, estaria comprovada: está inscrita nos seus cérebros. Uma tal especulação é certamente útil ao alívio de conservadores e preconceituosos que não admitem que cada um possa decidir o que fazer com seu próprio corpo e por seu desejo. Determinados pela natureza de seus cérebros, provado que "são" homossexuais não por escolha, gays e lésbicas passariam a ser perdoados de seus vícios, pecados, anomalias etc. Até que cheguem aqueles que irão sugerir cirurgias reparadoras da "inversão cerebral". Engano pensar que a conclusão que o preconceito formulará será outra.

O argumento da natureza despolitiza a reflexão sobre gênero e sexualidade e atrela direitos a serem conquistados pela mudança de mentalidade da sociedade ao obscurantismo do apelo ao biológico. O que a mentalidade conservadora e o preconceito não suportam é simplesmente a idéia da liberdade.

É fato que muitos LGBTTs flertam com as teses de um substancialismo (ou essencialismo) naturalista, sem que tenham consciência da despolitização que a posição representa. Muitos também não suportam (emocional e politicamente) a idéia da escolha. Ao que parece, enxergam nas suas próprias vivências da homossexualidade algo que somente se torna suportável se forem representadas como destino inevitável ou dádiva da natureza. A homossexualidade seria para alguns destes experienciada como peso, fardo, culpa, que somente se tornaria possível aceitar se encarada como uma realidade com a qual já se nasce e que se passa a ser portador, como se porta a cor dos olhos (não seria esta a fonte do discurso da "inclusão social" do segmento LGBTT em políticas públicas? Inclusão social como se fala disso para os chamados "portadores de necessidades especiais"?). Deixando de entender que o caráter transgressivo ou subversivo das homossexualidades está no fato mesmo destas escolhas divergirem da heteronormatividade, escolhas que se tornam alternativas à (ideologia da) heterossexualidade obrigatória, no direito de cada um em se inventar a si mesmo no corpo e na alma, muitos gays, lésbicas, travestis e transexuais renderam-se ao argumento da natureza. Definitivamente, não nascemos gays, lésbicas, travestis, heterossexuais ou o que quer que seja, somos socialmente fabricados, assim como nos inventamos, quanto ao gênero e quanto à sexualidade. Inventamo-nos!

Como, para a mentalidade conservadora e para o preconceito, as homossexualidades são vistas como anomalias, perturbações do desenvolvimento sexual suposto normal, não se pode pretender admiti-las e institucionalizá-las, como reivindicam os movimentos LGBTTs nos diversos países, se não forem enquadradas como coisas inscritas na natureza biológica dos indivíduos. O segredo é: visto que nossas sociedades não conseguem mais barrar as conquistas que se obtém continuamente, a única possibilidade que o preconceito enxerga de reconhecer como legítimas as reivindicações LGBTTs é tornando biológicos o desejo e a diversidade sexual. Do contrário, Estados e sociedades estariam legitimando o que, sendo escolha, preferência, opção, desejo, seria vício, sem-vergonhice, safadeza, pecado. Na moral dominante, não se pode admitir institucionalizar o que seriam caprichos da "falta de vergonha" de gente que escolhe ser diferente, que escolhe divergir da norma social. Assim, o próprio preconceito inventou sua saída: eles querem institucionalizar direitos, mas terão que admitir que a existência de homossexuais não se deve ao desejo, à (liberdade de) escolha, a preferências, mas a fatores biológicos, genéticos, anatômicos, fisiológicos.

Contra as armadilhas do preconceito, contra as naturalizações e reificações perigosas, é preciso opor-se com coragem intelectual e decisão política!

Alípio de Sousa Filho
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